O transplante de medula óssea (TMO) é um dos principais tratamentos para algumas doenças hematológicas malignas e síndromes de falência da medula óssea, promovendo cura em cerca de 20 a 70% dos pacientes que se submetem a esse procedimento. Como a maioria dos tratamentos o TMO também possui efeitos colaterais e possíveis complicações durante e após a realização do mesmo. A doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH) é uma das principais possíveis reações e complicações causadas nesse tratamento.
A DECH é decorrente da reação das células do doador (enxerto) contra o organismo do paciente (hospedeiro). Seus sintomas podem ser locais, em um único órgão, ou podem estar disseminados, sendo comuns alterações em pele, olhos, boca, trato gastrointestinal, pulmões e articulações. Há quatro graus de acometimento da DECH, sendo esses estabelecidos de acordo com os danos dermatológicos, taxa da bilirrubina, quantidade da diarréia, e presença de algia abdominal. É atualmente a principal causa de morbimortalidade pós-transplante de medula óssea, afetando cerca de 30 a 80% dos pacientes que sobrevivem com mais de 100 dias após o TCTH alogênico, e está relacionada à piora na qualidade de vida, prejuízo funcional e ao uso contínuo de imunossupressores. De acordo com o Consenso do Instuto Nacional de Saúde Americano (NIH), já é evidente que os pacientes com DECH leve apresentam maior qualidade de vida do que aqueles com DECH moderado, e ambas as categorias possuem maior qualidade de vida do que pacientes DECH grave. Além disso, estudos mostram que a redução da capacidade funcional causada pela DECH é mais acentuada em pacientes mais velhos quando comparada aos mais novos. Autores defendem que esses dois fatores citados (qualidade de vida e capacidade funcional) devem ser consideradas pela equipe médica ao planejar a continuidade do tratamento do paciente.
Em um estudo publicado por SA Mitchell e seus colaboradores (2010) foram avaliados os fatores que influenciam nas limitações funcionais de 100 sobreviventes após 100 dias do TMO que apresentaram DECH. As limitações funcionais foram identificadas a partir do componente físico da escala SF-36, que indicou uma média inferior nesses indivíduos (média 36,8 ± 10,7) quando comparada à média da população nos EUA (média 50). A literatura apresentada na introdução do artigo aponta que os fatores que influenciam nas limitações funcionais são idade, gênero, intensidade da imunossupressão, gravidade do DECH, tempo desde o diagnótico de DECH, comorbidades e desconforto por sintomas. Os resultados desse estudo não foram exatamente os mesmos da literatura, porém sugerem que os indivíduos com DECH moderado a severo que exigem tratamento com níveis moderados a altos de imunossupressores podem apresentar limitações funcionais significativas. Essas limitações englobam atividades como subir escadas, deambular, realizar atividades domésticas e outras atividades de esforço moderado.
Outro estudo realizado na área, Physical function and quality of life in patients with chronic graft-versus-host-disease: A summary of preclinical and clinical studies and a call for exercise intervention trials in patients, utilizou um teste de caminhada de 2 minutos para avaliar a resposta terapêutica do DECH, mostrando que resultados piores se relacionavam com redução da qualidade de vida, da capacidade funcional, e aumento da mortalidade. Para avaliar a massa muscular foi utilizada a dinamometria manual, indicando que a mesma apresentava relação direta com a gravidade da doença. Também foram avaliados os efeitos articulares a partir das amplitudes de movimentos ativas e assistidas de MMSS e MMII, indicando mais uma vez que a maior severidade da DECH se relacionava com a piora das amplitudes. Ao final, o autor ressalta a importância de intervenções não farmacológicas como o exercício físico regular para o tratamento da doença, citando também outros benefícios já evidenciados pela literatura como a melhora da capacidade cardiorrespiratória e do VO2 pico.
Esses mesmos autores, em outro trabalho, analisaram os efeitos do exercício físico em ratos com DECH que não estavam recebendo outras drogas, indicando redução da capacidade física menos acentuada em camundongos que seguiram um programa de exercícios físicos aeróbicos regulares (30 minutos de esteira de intensidade moderada, 5 sessões por semana) iniciado 2 dias após o transplante. É sugerido que o exercício físico regular provoca maior atividade de algumas enzimas (como a citrato sintase, participativa no ciclo de Krebs), e também se comporta como um marcador-chave da capacidade oxidativa e mitocondrial, auxiliando no processo de reciclagem celular.
Outro estudo recente (WISKEMANN, 2015), analisou e comparou os resultados de dois tipos de intervenções não farmacológicas realizadas durante o período de 1 ano em 256 indivíduos que realizaram o transplante halogênico: exercícios físicos (exercícios de resistência, 3 a 5 vezes por semana) versus relaxamento. Ao comparar a mortalidade entre os grupos observou-se a taxa de 12 % de mortalidade no grupo de intervenção, versus 28% no grupo controle. Importante nos atentarmos ao fato de que não eram todos os 256 indivíduos que apresentaram DECH, porém o resultado permanece relevante ao lembrarmos que essa é a maior causa de mortalidade após o transplante alogênico.
Todos os estudos analisados reforçam a falta de evidências mais concretas em humanos para afirmarmos com certeza que o exercício é somente benéfico no paciente que passa pelos efeitos degradantes da DECH. Porém, também reforçam que apesar da falta dessa evidência não há estudos mostrando que a intervenção possui malefícios. Diante disso, uma possibilidade enquanto aguardamos novos estudos na área é sermos menos específicos e buscarmos outras evidências já ais concretas da importância do exercício físico no paciente do transplante de medula óssea, ou até mesmo no paciente oncológico (há textos sobre esses dois assuntos já publicados aqui no blog).
Muito comumente esse paciente se encontra bastante debilitado não somente fisicamente, mas também mentalmente. Afinal, vamos tentar pensar quantos momentos e situações esse paciente já passou: sintomas da doença, diagnóstico da doença, tratamento da doença e preparo para o transplante, efeitos colaterais e adversos da fase pré-transplante, realização do transplante, efeitos colaterais e adversos pós transplante, e ainda, possivelmente, uma possível DECH. Como será que esse paciente se encontra? Como será que está seu nível de tolerância de desconforto e dor para realizar fisioterapia? Quais são suas expectativas? O quão adaptado esse atendimento deve ser às condições físicas e psicológicas dele naquele momento?
Ao passar por tudo isso pode acontecer do paciente ser fisicamente mais capaz do que ele pensa ser. De forma alguma estamos dizendo que a dor física não existe, pelo contrário – no início do texto falamos sobre quantos locais a DECH pode afetar. Mas, em função do longo período de tratamento e internações esse paciente já está bastante sensibilizado e debilitado psicologicamente. E ai entra a experiência específica do profissional de entender isso e não confundir por exemplo, com a falta de colaboração do paciente. Esse é um dos tipos de paciente mais debilitados e acompanhados de especificidades que podemos encontrar no ambiente hospitalar, e requer um atendimento totalmente adaptado e individualizado às condições apresentadas no momento, além de claro, alinharmos sempre nosso objetivos com os outros profissionais responsáveis pelo cuidado com o mesmo.
Lívia Ribeiro Zalaf
Fisioterapeuta da unidade do Transplante de Medula Óssea do Hospital Mirante (Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo)
Especialista em Fisioterapia em Oncologia pela UNIFESP (2015)
Fisioterapeuta formada na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/2012)
Contato: lizalaf@gmail.com
1- ALENCAR, F. S. L. TRATAMENTO DAS MANIFESTAÇÕES ORAIS DA DOENÇA ENXERTO CONTRA HOSPEDEIRO CRÔNICA: REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERAURA. Rev. Bras. Odontol. vol.73 no.2 Rio de Janeiro Abr./Jun. 2016
2- BOLOGNIA, J. L. et al. DERMATOLOGIA. Livro. 3ª edição. Sociedade Brasileira de Dermatologia.
3- LUCES, C. F. et al. PHYSICAL FUNCTION AND QUALITY OF LIFE IN PATIENTS WITH CHRONIC GRAFT-VERSUS-HOST-DISEASE: A SUMMARY OF PRECLINICAL AND CLINICAL STUDIES AND A CALL FOR EXERCISE INTERVENTION TRIALS IN PATIENTS. Bone Marrow Transplant. 2016 January ; 51(1): 13–26. doi:10.1038/bmt.2015.195
4- SA MITCHELL. DETERMINANTS OF FUNCTIONAL PERFORMANCE IN LONG-TERM SURVIVORS OF ALLOGENIC HEMATOPOIETIC STEM CELL TRANSPLANTATION WITH CHRONIC GRAFT-VERSUS-HOST DISEASE (GVHD). 2010 April ; 45(4): 762–769. doi:10.1038/bmt.2009.238.
5- SOUZA, C. V. ADAPTAÇÃO TRANSCULTURAL DO INSTRUMENTO ESCALA DE SINTOMAS DA DOENÇA DO ENXERTO CONTRA O HOSPEDEIRO CRÔNICA E VALIDAÇÃO EM UMA POPULAÇÃO BRASILEIRA. Tese de doutorado apresentada à Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção de título de Doutora em Ciências na área de concentração Clínica Médica. Disponível na biblioteca virtual da UNICAMP. 2016.
6- WISKEMAN, J. et al. PHYSYCAL EXERCISE TRAINING VERSUS RELAXATION IN ALLOGENIC STEM CELL TRANSPLANTATION (PETRA STUDY) – RATIONALE AND DESING OF A RANDOMIZED TRIAL TO EVALUATE A YEARLONG EXERCISE INTERVENTION ON OVERALL SURVIVAL AND SIDE-EFFECTS AFTER ALLOGENEIC STEM CELL TRANSPLANTATION. BMC Cancer 2015, 15:619
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